Eleito pela revista Rolling Stone o terceiro melhor álbum de música brasileira de todos os tempos (eu o colocaria em primeiro), Construção é um disco carregado de críticas sociais lançado justamente durante um dos períodos mais severos do regime militar, que censurou parte do disco como por exemplo a música Samba de Orly, onde Chico fala sobre o exílio:
Vai, meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão de correr assim
Esse álbum mostra todo talento de Chico Buarque como letrista. Em praticamente todas as músicas é impossível não se impressionar com a capacidade poética desse compositor, sendo o seu ápice a canção Construção, que dá nome ao disco e possui arranjos do maestro Rogério Duprat. Nunca ouvi nada que chegasse perto da genialidade poética dessa música. Construção narra o último dia de vida de um trabalhador da construção civil que, após fazer tudo como se fosse a última vez, cai no chão como um pacote flácido, na primeira narração, tímido, na segunda, e bêbado, na última vez que sua história é narrada. Nas três vezes em que sua morte é contada a consequência é apenas o prejuízo causado por cair na contramão atrapalhando o tráfego, o público e o sábado. Eu vejo esse final como uma crítica à perda de sensibilidade da população com o indivíduo devido à inversão de valores gerada por uma ideologia doente e individualista, onde problemas como um congestionamento no trânsito estão acima do valor da vida de um ser humano proletário. Chico uma vez disse para revista Status (link aqui) que essa canção não se trata de uma denúncia ou um protesto contra a alienação da sociedade no meio urbano, como eu interpretei acima, mas que "sua beleza está no jogo de palavras que possui", minimizando assim sua temática social. Confesso que tenho um pouco de resistência em aceitar esse fato. Não acredito que algo tão mágico possa ter sido feito sem a emoção que a temática social pode causar. De qualquer forma, o fato é que o jogo de palavras utilizado é algo incrível e com certeza o grande responsável por colocar essa canção no pedestal que ela ocupa na música popular brasileira. Como a revista Bula descreve, a letra de Construção é uma avalanche de proparoxítonas, como pode ser visto no trecho abaixo:
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
A história é narrada novamente mais algumas vezes, agora substituindo as últimas palavras de cada verso por proparoxítonas já usadas em outros versos. Posso afirmar com muita segurança que não tenho a bagagem literária e o conhecimento gramatical necessários para fazer uma análise justa da letra dessa música, eleita pela revista Rolling Stone, tão citada nesse blog, como a melhor canção brasileira de todos os tempos (dessa vez eu sou obrigado a concordar com a revista), por isso recomendo a leitura desse texto para quem quiser uma análise mais detalhada da sua estrutura poética: http://pensadoranonimo.com.br/analise-literaria-da-musica-construcao-chico-buarque/ . Por fim, uma curiosidade: Tom Jobim gostava tanto de Construção que chegou a recortar um jornal que continha a letra da música e comentava com a família sobre como a achava perfeita, segundo livro "Tom Jobim, um homem iluminado", escrito pela sua própria irmã.
No disco ainda estão presentes outros clássicos da identidade politizada de Chico, como Cordão, com uma letra que possui um claro recado à censura da época (ninguém vai me acorrentar enquanto eu puder cantar) e Deus lhe pague, que trata com ironia a situação de repressão que muitos brasileiros viviam durante o regime militar, agradecendo por algo tão básico para a vida do cidadão como sua própria existência e a concessão para sorrir:
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Por fim destaco a música Cotidiano, que como o próprio nome já sugere, retrata o dia-a-dia de um cidadão comum. É possível interpretar de muitas maneiras, entre elas uma crítica ao conceito conservador de família, em que o marido sai para trabalhar e a esposa existe para lhe servir, e à própria cadeia sem fim que é a rotina e a perda do poder de decisão que ela implica. É interessante observar que apesar da aparente felicidade do casal em alguns versos fica evidente a insatisfação do personagem principal da música: Todo dia eu só penso em poder parar, meio dia eu só penso em dizer não. Bom, da mesma forma que Chico foge da crítica social de Construção em entrevistas, nada impede que a intenção do autor tenha sido apenas retratar a vida de um casal comum da época, o que não diminui brilho dessa animada música. Existe uma versão bem legal de Cotidiano gravada por Seu Jorge e Marcelinho da Lua numa versão Drum n' Bass que pode ser encontrada no excelente álbum do DJ carioca Viagem ao Mundo da Lua.
Construção é um marco na música brasileira e chegou a ter uma demanda de mais de dez mil cópias por dia, ultrapassando a marca de mais de cem mil discos vendidos ainda nas primeiras semanas de venda, um recorde para a gravadora Philips, como conta uma reportagem de 1972 da revista Realidade. Um álbum muito importante na minha vida que eu só não comentei antes aqui no blog por saber da responsabilidade que é falar de Chico Buarque, patrimônio cultural do Brasil, como uma vez falou Jô Soares.
Link para ouvir o disco no Spotify:
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